Sep 1, 2025
This magic moment
Rafael Moura
#MatemáticaDaNatureza

Por volta dos anos 2000, quando deixei minha cidade natal de Alegrete (RS) para estudar na capital do estado, Porto Alegre, e ingressar na faculdade de Engenharia Civil, carregava comigo não apenas sonhos acadêmicos, mas também uma profunda paixão pela matemática – herança preciosa do meu pai, José Ascânio, in memorian, que sempre me mostrou a beleza dos números e das equações que governam nosso mundo.
Naquelas idas e vindas entre as cidades, uma pergunta simples me intrigava constantemente: Por quê Alegrete era muito mais quente que Porto Alegre no verão e significativamente mais fria no inverno? Mal sabia que essa curiosidade, aparentemente trivial, mudaria completamente o rumo da minha carreira.
Após alguns anos, ouvi o chamado. Decidi partir para Ciências Biológicas e minha conexão com os estudos de meio ambiente foi imediatamente gratificante. Durante a graduação, tive a sorte de encontrar professores excepcionais que até hoje considero grandes amigos.
Durante meu estágio no Laboratório de Ecologia, tive a orientação do Professor Nelson Fontoura que me desafiou a trabalhar com mapeamentos dos projetos desenvolvidos pelo laboratório. Acabei evoluindo para estudos mais complexos sobre cartografia, geoprocessamento, sensoriamento remoto e – naturalmente — estudos climáticos.
Foi então que aconteceu um daqueles momentos mágicos da ciência — quando as sinapses cerebrais se conectam e resolvem questões que pareciam perdidas no tempo. De repente, a resposta para minha pergunta de juventude estava ali, cristalina: era tudo culpa do efeito da continentalidade.
Para compreender este efeito de forma prática, precisamos estudar um elemento químico extraordinário: a água.
A Equação da Água
A água possui a maior capacidade térmica específica entre as substâncias comuns - 4,2 J/g·°C - ou seja, cada grama de água precisa absorver ou ceder 4,2 joules de energia para que sua temperatura varie apenas 1 grau Celsius.
Em outras palavras, a água é uma verdadeira "esponja térmica": demora muito para esquentar e demora igualmente muito para esfriar. Esta propriedade aparentemente simples governa padrões climáticos planetários de uma forma que poucos imaginam.
Quando analisamos um mapa mundial e dividimos a Terra no Equador, obtemos dois hemisférios com características fundamentalmente diferentes:

O Hemisfério Norte é dominado por grandes massas continentais (Europa, Ásia, América do Norte). Já o Hemisfério Sul é caracterizado por extensas massas oceânicas
Esta distribuição desigual de terras e oceanos têm um efeito profundo no clima global. Porto Alegre, localizada próxima ao Oceano Atlântico, recebe a influência moderadora das águas oceânicas. Alegrete, situada 500 quilômetros no interior do continente, experimenta o efeito da continentalidade pura. O resultado? Amplitudes térmicas drasticamente diferentes.
Rio Grande do Sul vs Carolina do Norte
Um dos exemplos mais impressionantes deste fenômeno pode ser observado comparando locais de latitudes similares nos dois hemisférios:
Rio Grande do Sul (Brasil): Latitude aproximada de 33°S
Carolina do Norte (EUA): Latitude aproximada de 34°N
Apesar de estarem em posições geográficas similares em relação ao Equador, suas realidades climáticas são completamente diferentes:
Carolina do Norte:
Invernos rigorosos com nevascas intensas
Amplitudes térmicas extremas (de -10°C a 35°C)
Sistemas meteorológicos violentos
Rio Grande do Sul:
Invernos mais amenos
Amplitudes térmicas moderadas
Sistemas meteorológicos menos severos
A distribuição desigual de terras e oceanos explica por que:
Hemisfério Norte:
Furacões mais intensos e frequentes
Ciclones bomba com quedas bruscas de pressão
Nevascas históricas que paralisam cidades inteiras
Ondas de calor e ondas de frio extremas
Correntes de jato mais instáveis
Hemisfério Sul:
Sistemas meteorológicos mais estáveis
Ciclones tropicais menos frequentes
Variações térmicas mais suaves
Menor ocorrência de eventos extremos
A Mecânica das Correntes
E a alta capacidade térmica da água não apenas modera temperaturas locais, mas também cria um sistema global de transporte de calor através das correntes marítimas.
Imagine a Terra como uma imensa máquina térmica:
No Equador: As águas se aquecem intensamente e se movem mais rapidamente devido à maior circunferência terrestre
Nos Pólos: O movimento é praticamente nulo devido à menor circunferência
Encontro com Continentes: As correntes são desviadas, criando padrões complexos de circulação
Transporte de Calor: Correntes quentes levam energia dos trópicos aos pólos; correntes frias fazem o caminho inverso.
E tudo isso tem consequências climáticas, já que este sistema de "esteiras rolantes oceânicas" resulta em: Regulação térmica global, ou seja a redistribuição de calor entre latitudes; Modificação de pressões atmosféricas (o que origina o sistemas de ventos); Criação de microclimas (como o clima ameno do Reino Unido, aquecido pela Corrente do Golfo); e Fenômenos como El Niño, que são alterações nas correntes do Pacífico que afetam o clima mundial.

A Matemática por Trás dos Fenômenos
A capacidade térmica da água de 4,2 J/g·°C significa que:
1 litro de água precisa de 4.200 joules para aquecer 1°C
1 litro de ar precisa de apenas 1.000 joules para aquecer 1°C
Esta diferença de mais de 4 vezes explica por que:
Regiões costeiras têm clima mais estável
Continentes experimentam variações térmicas extremas
Ilhas oceânicas raramente têm invernos rigorosos
Desertos continentais são fornos durante o dia e geladeiras à noite
Aplicações Práticas do Conhecimento
Ok. Mas o que a continentalidade nos ajuda? Vamos lá. O planejamento urbano pode se beneficiar muito disso, projetando cidades mais resilientes a mudanças climáticas, posicionando corpos d'água para moderar temperaturas , desenvolvendo sistemas de ventilação que aproveitam brisas marinhas.
Na agricultura e produção de alimentos, este conhecimento auxilia na escolha de culturas adequadas para amplitudes térmicas específicas; no planejamento de irrigação (considerando evaporação diferencial); além de ajudar a prever geadas e ondas de calor.
O desenvolvimento de uma arquitetura bioclimática, com edificações adaptadas ao clima local, aproveitando massas térmicas para regulação natural e considerando ventos predominantes.
A Ciência Transforma
Hoje, quando vejo um mapa de temperaturas ou analisar dados climáticos, lembro-me daquele jovem curioso que viajava entre Alegrete e Porto Alegre. A pergunta simples de um estudante se transformou em uma ferramenta de compreensão do mundo.
A ciência tem esse poder transformador: pega nossas curiosidades infantis e as transforma em chaves para desvendar os mistérios do universo. Cada equação, cada gráfico, cada medição é uma peça do quebra-cabeças gigantesco que chamamos de natureza.
O efeito da continentalidade não é apenas um conceito acadêmico - é a explicação matemática para as sensações térmicas que experimentamos, para as roupas que usamos, para os alimentos que cultivamos, para as casas que construímos.
A Próxima Equação
Na próxima edição da "Matemática da Natureza", vamos explorar como a concentração de CO₂ na atmosfera interfere na temperatura do planeta. Descobriremos como um gás que representa apenas 0,04% da atmosfera pode alterar completamente o equilíbrio térmico terrestre.
Veremos que, assim como a capacidade térmica da água explica a continentalidade, a absorção de radiação infravermelha pelo CO₂ explica o aquecimento global. Mais uma vez, a matemática nos oferecerá as ferramentas para compreender fenômenos que afetam toda a humanidade.
A coluna Matemática da Natureza explora as equações invisíveis que governam nosso planeta, transformando curiosidades cotidianas em compreensão científica profunda.
Esta edição é dedicada à memória de José Ascânio, que me ensinou que a matemática é a linguagem com que descreve o universo.